domingo, 22 de agosto de 2010

Painel Crítico/ Seminário Internacional de Crítica Teatral

Leia o belo texto de Kil Abreu sobre CHAT. Uma diálogo lindo, generoso, revelador, com nossa cena.

Kil Abreu


No debate sobre o espetáculo o dilema instaurado no entorno de Chat tem no seu centro o problema do modo ideal de comunicação com a platéia e dramatiza algo curioso e não pontual, como pode parecer. Àquele decreto de que a sociedade não existe, o que existe são os indivíduos – máxima tatcherista que demarcou a evolução da política neoliberal – o teatro dos últimos anos vai responder, informado por uma conjuntura nova, que a sociedade não apenas existe, sim, como a sobrevivência do teatro depende fundamentalmente de uma retomada urgente do diálogo com ela.

É assim que toda uma ordem estética abre veredas que resultam em muito do que temos na cena brasileira hoje. Em contraponto ao esmerado e virtuoso acabamento formal de experiências herméticas e estilosas, como a dos oitentistas Gerald Thomas e Bia Lessa, o teatro de grupo vai retomar um modo de produção que, por ser naturalmente tumultuado, arredonda-se muitas vezes em resultados cênicos deliberadamente mais precários segundo certo padrão de visualidade, mas compensados por este movimento decidido na direção da cidade e dos cidadãos. Não serão poucos os exemplos, em coordenadas e propostas das mais diferentes, que indicam esta disposição de “descer à platéia” e estabelecer o confronto mais direto com o meio. Pensemos em toda a importante obra do Teatro da Vertigem invadindo presídios, rios, hospitais, igrejas; no Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e o projeto com a cultura hip-hop. Pensemos na Cia. do Latão, dialogando com o MST nos terrenos do Círculo de giz caucasiano, nas intervenções urbanas do Ói nós aqui traveiz, ao sul, e o chamado às prostitutas da zona no trabalho do Cuíra, ao Norte. Todas estas e dezenas de outras são manifestações determinantes destes caminhos atuais da teatralidade, que se fizeram necessários para este deslocamento do eixo de criação, da obra representada para a obra quase que compartilhada com o público e a cidade.

Parece que há esta tentativa de estender novas pontes entre os espaços da vida privada e os espaços da convivência social, de estabelecer a comunicação com a platéia em um modelo mais flexível e mais direto quando da relação obra/público, o que institui, em alguma medida, uma maneira de resistir a mediações que impeçam a efetividade deste esquema. São políticas de uma presença direta que retomam aquela fé no sujeito como membro da engrenagem social (e neste ponto estariam alinhadas tanto as estéticas propriamente engajadas quanto os teatros da subjetividade, quando postos neste esquema relacional).

Mas, tenhamos calma. Este argumento não está aqui, claro, para enquadrar o espetáculo Chat nos espaços que ele não pretende visitar. Mas, talvez sirva para uma aproximação, pelas bordas, daquele tema que mobilizou a todos no debate. O interessante é que nele a questão de fundo indica justo o sujeito neste entremeio, o lugar complexo em que as mídias digitais nos colocam quando criam um espaço de sociabilidade que herda para si tanto aquele individualismo ilhado quanto uma mais que generosa possibilidade de compartilhamento e de socialização, com todas as variações sobre o desejo e o comportamento que as práticas mapeadas na montagem apresentam. E é isto o que determina as questões políticas e de forma que o texto coloca na mesa para serem exploradas ou revistas.

Pois, quando o encenador Rodrigo Dourado expõe detalhes do processo e nos relata aquelas tentativas de aproximação com a platéia, é também de dentro desta problemática que ele fala. Se o ponto de vista for o das soluções teatrais a dificuldade está em presentificar com objetividade (mas não em chave realista, segundo a vontade do grupo) a relação entre vida e virtualidade em todas aquelas variações que o texto sugere e em que o virtual (enfim, uma forma de construção da realidade) e o real, ambos conduzidos aos lugares da tensão dramática, têm fronteiras borradas, ainda que a ação se encaminhe para um afunilamento. O tema da presença penetra, então, todos os sistemas de relações da montagem: aqueles que acontecem no palco e que são desenhados na ação física, na determinação dos espaços de ficção e na tradução cênica das situações e personagens; e aqueles que dizem respeito à atenção da platéia e à maneira como ela é convocada a acompanhar a encenação.

Disto podemos partir para algumas considerações sobre o alcance e as dificuldades do espetáculo. Primeiro salta, talvez em contraste e já em resposta crítica ao universo da peça, uma posição ética do grupo que não se traduz em discurso paralelo à montagem. Está no próprio ato, na maneira dedicada com que o elenco empresta sua energia às cenas, em vontade de intervenção que é muito visível. Está também em uma concepção de espetáculo que não se conforma nem com o nihilismo (ainda que a tonalidade geral seja sombria), nem com o cinismo (porque não se põe apenas a descrever, sem compromisso, a dramaturgia). Há, muito a favor do trabalho, um empenho sincero em encontrar saídas criativas que amplifiquem a plenos pulmões problemas comuns que, pela novidade, nos parecem estranhos.

Por outro lado, como dizia Brecht, tornar estranho o familiar e familiar o estranho é atitude fundamental para a aderência e o reconhecimento crítico do espectador em relação à cena que ele vê. E, salvo engano, é este elemento de familiaridade que o espetáculo ainda não consegue convocar, de dentro da sua estranheza. Por isso será produtivo perguntar no momento em que a platéia responde na negativa se isto se deve apenas ao rol de temas da peça – que, de resto, não deixam de anunciar a violência que a vida ordinária já tem. Provavelmente os momentos de não aderência pode ser debitado na conta de um desconforto que antes passa pela dificuldade de acompanhar as proposições formais do espetáculo que, como observou bem o encenador, exige mesmo um compromisso de quem assiste. Entretanto, para além da preguiça mental que é mesmo disseminada, sugiro colocar em perspectiva também as dificuldades que o espetáculo tem na potencialização das atenções.

Uma parte do desafio que o texto de Gustavo Ott propõe está na concretização daquelas zonas “suspensas” da fantasia, até que ela se desdobre em ação real ou, por vezes, o inverso disto. De todo modo há este duplo fundamental. No espetáculo, porém, os diferentes campos pelos quais as ações avançam e recuam tendem a ser totalizados sempre como projeções de atos concretos, o que esteriliza o elemento de virtualidade e na prática coloca no mesmo plano cênico instâncias do imaginário da peça que, vistas assim, perdem parte do seu elemento dialético essencial. Mas, a perda não é apenas quanto ao pensamento. Alcança, a rebote, aquele efeito de comunicação do espetáculo que fica, paradoxalmente, desreferencializado por conta de uma excessiva materialização das imagens. Por isso, por exemplo, a violência que é informada e é assunto importante na dramaturgia não se intensifica a ponto de se transformar em ambiência, em estado cênico. Permanece como informação.

Como se vê, a encomenda inicial era mesmo das mais difíceis. Não apenas porque a representação teatral de modos novos de interação são, em si, difíceis. Mas porque a dramatização destes modos são a dramatização de aspectos novos da sociabilidade, muitas vezes estes sim, difíceis de visualizar e traduzir esteticamente com precisão. Voltando ao princípio, sem que se peça para que a montagem seja “social” e que interaja com a platéia (o que muitas vezes é apenas artifício de fachada que não ajuda em nada o caráter propriamente social do encontro), há de se pensar com atenção neste lugar comum entre cena e audiência, primeiro na perspectiva das soluções formais e depois na do alcance e do compartilhamento das idéias do espetáculo, que virão por extensão.

Sem prejuízo do argumento usado até aqui, estas dificuldades em certa medida também qualificam o trabalho de Rodrigo Dourado com o seu grupo. Se por um lado ele não é perfeito, por outro se dedica a articular tarefas artísticas e de pensamento de grande monta, que ganharam o espaço de uma especulação criativa inquieta, o que por fim acaba sendo a parte mais valorosa da experiência. Isto não é tudo, mas faz diferença no panorama recifense. Então, também já não é pouco.

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